ATIVIDADES DE ALTO RISCO PARA ALIVIAR O ESTRESSE DA MEDICINA: DO ÁLCOOL AO ESPORTE RADICAL

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Após um longo plantão, alguns médicos sentem a necessidade de ir à academia ou correr.

Outros, de um drink.

E há ainda quem precise de algo… a mais.

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Todo mês de junho no Colorado, Estados Unidos (EUA), um grupo peculiar de médicos se reúne no International Extreme Sports Medicine Congress para dois dias de aprendizado.

Eles examinam as complexidades de tratar pacientes que praticam esportes radicais e investigam as lesões que acompanham essas atividades, a psicologia dos atletas que as praticam e até os aspectos ambientais que às vezes podem impactar esses esportes. O objetivo é sair do evento com mais preparo para cuidar de uma população cada vez maior de pacientes que fazem paraquedismo, montanhismo, esqui, entre diversos outros esportes.

E talvez, por trás de tudo isso, exista um elemento de “quem conhece, reconhece”. O fundador da conferência, Dr. Omer Mei-Dan, cirurgião ortopédico na University of Colorado Hospital, é adepto ao base jumping, pratica alpinismo em montanhas geladas e canoismo em águas bravas.

Ninguém precisa de um momento para relaxar mais do que um médico, mas, quando os médicos praticam atividades de alto risco em suas horas vagas — e isso pode englobar prática de esportes radicais, uso de bebidas alcoólicas ou drogas —, a recompensa justifica o risco potencial?

“Comportamentos arriscados destroem carreiras médicas todos os dias”, disse o médico Dr. Steve Adelman, psiquiatra formado em Harvard e preceptor clínico. Ele afirma que há uma variável em jogo que não costuma ser mencionada: como cada médico percebe o “risco”.

Tudo se resume à dopamina

Veja a médica Dra. Allison Brooke Gordon, especialista em medicina de urgência, que pratica slackline com regularidade — um impulso de se equilibrar em uma corda bamba que fica sobre… bem, às vezes um desfiladeiro (Figuras 1, 2 e 3).

Figura 1. Dra. Allison Brooke Gordon equilibrando risco e recompensa — literalmente.
Figura 2.
Figura 3.

Ambos são comportamentos de risco, opcionais, podem levar a consequências na carreira e têm tudo a ver com a recompensa da dopamina. Mas qual atividade é percebida como mais arriscada?

O Dr. Steve, também especialista credenciado em dependência química, observou que a medicina é uma profissão altamente estressante, muitas vezes traumatizante, que molda a tolerância ao risco de cada médico. “Às vezes, eles reprimem esse [trauma] e então se envolvem em atividades que os ajudarão a tirá-lo da cabeça”, disse o especialista.

Pode parecer estranho associar a prática de esportes radicais aos comportamentos viciantes, mais clássicos, mas o Dr. Steve sugere que estejam mais ligados do que se pensa.

“Penso que as atividades atléticas que ativam os neurotransmissores são adequadas até certo ponto”, disse o Dr. Steve. “Mas há um limite. O viciado em heroína mais grave que encontrei no decorrer da minha carreira foi um atleta de classe mundial que não conseguia deixar de se exercitar mesmo quando estava machucado. Ele iniciou o uso de analgésicos para poder continuar, o que acabou levando-o ao vício em heroína”.

Desse ponto de vista, a questão pode não ser tanto sobre a atividade ou o comportamento em si, mas a abordagem: a psicologia por trás da escolha é saudável ou não?

A Dra. Allison, de 33 anos, que também é veterana em ciclismo de montanha e esqui de fundo, diz que os esportes trazem uma sensação de fluidez e uma boa pausa no ritmo agitado do setor de emergência. No entanto, seu trabalho lhe dá perspectiva sobre os riscos. “Além de trabalhar no setor de emergência, trabalhei como paramédica e médica em eventos ao ar livre, então sei o que está em jogo.

Mas… problemas acontecem

Dra. Brianna Grigsby é médica de família e uma ultramaratonista (i.e. alguém que corre distâncias superiores às de uma maratona comum, de 42 km). Ela conta que adotou o hobby para explorar os seus limites físicos. No ano passado, a jovem de 37 anos participou de um evento de 400 km no Arizona (EUA).

Em 2020, ela participou de um evento de 105 km. “Quando terminei a corrida, não precisei urinar por horas”, disse. “Passei as últimas horas do percurso vomitando e sem conseguir beber água.”

Quando a Dra. Brianna finalmente usou o banheiro, a sua urina estava marrom-escura. “Eu me perguntei se poderia estar desenvolvendo uma insuficiência renal”, compartilhou. “Enviei mensagens para alguns colegas, que me orientaram a ir para a emergência, mas eu não estava mais vomitando e consegui ingerir líquidos. Decidi tentar tomar a quantidade equivalente de líquidos que teriam me dado no hospital”.

Ela se permaneceu acordada até ter vontade de urinar novamente, e dessa vez a urina estava amarela. A médica sabia que já estava fora da zona de perigo e evitou o pronto-socorro. “São esses os momentos em que ter algum conhecimento dos riscos que você está correndo e o que fazer a respeito ajuda”, disse a emergencista. “Por outro lado, saber essas coisas pode fazer com que você se preocupe um pouco a mais”.

A Dra. Allison concordou. “Às vezes acho que [o meu conhecimento] prejudica o meu desempenho. Percebo que se eu quebrar uma perna ou um braço, isso pode comprometer o meu trabalho.”

Encontrando o equilíbrio do risco

A Dra. Elaine Yu, médica emergencista da University of California San Diego (EUA) — e ávida alpinista —, disse que, ao buscar hobbies de alto risco, é fundamental gerenciar o perigo. “Esses esportes podem ser divertidos e seguros, desde que você tenha o treinamento e o equipamento adequados”, disse a jovem de 32 anos, que recentemente acrescentou o mergulho livre e o mergulho autônomo ao seu repertório.

A Dra. Elaine disse que a propensão a praticar esportes de maior risco é comum entre médicos e funcionários do setor de emergências. “O estereótipo é que somos caçadores de emoções”, disse a médica. “Acho que temos a capacidade de enfrentar o desconhecido e lidar com algum nível de risco.”

Figura 4. Dr. Elaine Yu relaxa praticando escalada em rocha.

Aceitar um alto nível de perigo físico em um esporte é necessariamente prejudicial?

O médico Dr. Francesco Feletti, Ph.D., radiologista musculoesquelético da Azienda Sanitaria Locale de Romagna e professor assistente visitante na Università degli Studi di Ferrara, ambas na Itália, diz que não.

Praticante de kitesurf, o Dr. Francesco sofreu uma lesão traumática que resultou em uma cirurgia ocular de cinco horas de duração. Mas ele ponderou que “os praticantes de esportes radicais não são “viciados em adrenalina”. “Meticulosos em sua preparação”, esses atletas são “metódicos e precisos”.

A lesão do Dr. Francesco, embora traumática, não o impediu de continuar a trabalhar e, na verdade, levou-o a editar o livro Extreme Sports Medicine com a contribuição de outros 60 médicos. Seu ponto de vista: “O risco nos esportes radicais é, na maioria dos casos, mais presumido do que real. Na verdade, às vezes um erro pode levar a consequências mais graves do que em atividades mais tradicionais, mas também é verdade que o gerenciamento dos riscos é parte crucial desses esportes”.

No final das contas, o risco está nos olhos de quem vê

O Dr. Steve diz que aqueles médicos que evitam se envolver em esportes radicais, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas são os que encontraram mecanismos de enfrentamento saudáveis para seus trabalhos estressantes e os mantêm sob controle.

“[Praticar] escalada pode ser bom, por exemplo”, disse o médico. “Mas se você se sente compelido a fazer isso para lidar com as coisas, talvez não seja saudável. Não é tanto a atividade em si, mas a forma como ela é incorporada e como você a utiliza para lidar com o seu estresse”.

Para a Dra. Elaine, a escalada e suas outras atividades ao ar livre representam uma paixão saudável. Embora ela encontre outros alpinistas com lesões agudas adquiridas durante a prática, continua comprometida em continuar. “Quando vejo alguém se machucar escalando, busco prestar os primeiros-socorros e garantir que vão para a emergência”, explica. “Então eu penso sobre o que aconteceu e se o episódio era evitável. Geralmente foi algum erro que poderia ter sido evitado, como não usar o equipamento de segurança corretamente”.

A Dra. Elaine escala há quase metade de sua vida e encontrou o equilíbrio entre o risco e o não fazer: “Algumas pessoas podem pensar que é louco e diferente, mas é o meu primeiro amor, e eu tenho um bom equilíbrio”.

Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape.

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Fonte: Amanda Loudin para MedscapeFoto da capa: Wirestock para Freepik

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