Covid-19: Sob maior pressão, médicos e enfermeiros tendem a descuidar da própria saúde mental

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Na quinta-feira, dia 03 de abril, o telefone celular da Dra. Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro disparou. Eram profissionais de saúde abalados com a determinação federal de cadastramento obrigatório de 14 categorias para treinamento e possível convocação para atuar no Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à Covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019).

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A Dra. Alexandrina é psiquiatra, vice-presidente da Comissão de Atenção à Saúde Mental do Médico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), segunda secretária do Departamento Científico de Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina (APM) e atende pacientes em consultório (agora on-line).

A médica estuda a saúde mental de profissionais de saúde desde o final da década de 80, quando fez uma tese de doutorado que causou comoção ao revelar que os médicos morriam mais do que outras categorias nas primeiras 24 horas de internação. Isso ocorria “porque o médico demorava mais a chegar ao hospital, ficava se automedicando, postergando sintomas físicos com a ajuda de colegas, às vezes”.

Nesta entrevista ao Medscape, a Dra. Alexandrina alertou para a necessidade de os médicos não negligenciarem os cuidados com a própria saúde mental, sob pena de um grande aumento no número de casos de doenças psiquiátricas em uma população que já é bastante afetada.

A convocação feita pelo Ministério da Saúde aumentou a demanda por suporte emocional?

Dra. Alexandrina: Sim. Na hora que ocorre um anúncio desse, a ansiedade das pessoas aumenta muito. Em vários grupos de médicos dos quais faço parte, a maioria não sabe o que fazer. Muita gente me ligou por ter alguma doença crônica, cuidar dos pais e ter medo de levar a doença para casa. Muitos nem estão exercendo profissão, mas estão registrados nos Conselhos de Medicina. Na China seria uma caça às bruxas. Aqui não sei como será. As pessoas estão na dúvida se fazem o registro e se participam do treinamento. Se o fizerem, estarão automaticamente certificando que são voluntárias? Para o médico, é muito difícil dizer não em uma situação dessas. No entanto, os indivíduos dessa categoria profissional têm mais facilidade de apresentar quadro de hipocondria, crise de pânico, transtorno depressivo ou por uso de substância, aumentando o consumo de bebidas alcoólicas, tabaco ou de qualquer outra droga.

A incidência de depressão, ansiedade e outros transtornos psiquiátricos entre profissionais de saúde é igual ou maior do que na população brasileira em geral? 

Dra. Alexandrina: Temos um índice de suicídio muito grande entre os médicos. Os estudos mostram taxas entre três e cinco vezes maiores de suicídio entre os profissionais de saúde do que na população em geral. Se você olhar as condições de trabalho na área da saúde, estão cada vez mais sucateadas. Se você fizer uma retrospectiva, encontrará uma relação entre o setor sucateado e o estresse das categorias profissionais.

Há mais de três décadas a educação vem sendo sucateada. Então muitos professores adoeceram, tiveram burnout. Depois houve um grande pico entre os bancários, em seguida entre pessoas que trabalham com telemarketing. Agora há um pico na área da saúde – em todo o mundo.

Sua tese de doutorado mostrou que os médicos demoravam a buscar atendimento. Isso foi no finalzinho dos anos 80 e início dos anos 90. O que mudou em quatro décadas?

Dra. Alexandrina: Eu estudei o médico comparando-o com o engenheiro e o advogado. O engenheiro era o melhor paciente, porque, se estivesse doente, ia ao médico e seguia as orientações à risca. O advogado era um meio-termo, porque às vezes ia ao médico e seguia as recomendações, outras não, e tinha um índice elevado de alcoolismo. O pior de todos era o médico – descobrimos um índice de mortalidade cinco vezes maior do que nos dois grupos comparados nas primeiras 24 horas a partir do registro de internação. Posso dizer que, infelizmente, essa atitude se manteve ao longo das décadas. Basicamente, estou falando de homens e mulheres médicos e de homens e mulheres enfermeiros, e técnicos e auxiliares de enfermagem. Todas essas categorias acabam não cuidando da própria saúde.

Por quê?

Dra. Alexandrina: Porque o médico demora mais a buscar atendimento no hospital, e quando o faz, já está em estado grave. Ele se automedica e posterga até mesmo sintomas físicos – como é o caso do coração – às vezes com a ajuda de algum colega de profissão. Não que engenheiros ou advogados não morressem, mas chegavam a tempo de se fazer os protocolos com sucesso. Na época, o Instituto do Coração da Universidade de São Paulo ficou preocupado em me deixar publicar essa informação.

Temos números elevados de mortes por homicídio, acidentes de trânsito, traumas, doenças infectocontagiosas, entre outros males. Como isso afeta os médicos?

Dra. Alexandrina: A tudo isso se somam a falta de ferramentas para atender os pacientes, equipamentos de proteção individual e a escassez de concursos para contratar novos profissionais para a área pública. O coronavírus já nos pega esfarrapados, entendeu? Nós já vivemos um quadro de ameaça de desastre permanente. Eu canso de atender médicos que foram ameaçados por bandidos armados em hospitais públicos. Todo mundo está se perguntando como as categorias irão reagir. Veremos, de fato, a classe dos profissionais de saúde piorar bastante, como aconteceu na China. Em publicações recentes no periódico The Lancet, os chineses reconheceram que negligenciaram o lado emocional dos profissionais, e agora estão lidando com muitos casos de profissionais de saúde bastante adoecidos do ponto de vista emocional e psiquiátrico, apresentando transtornos depressivos e de ansiedade. Alguns apresentaram transtorno por uso de substâncias (drogas e álcool) e muitos apresentam transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Não podemos cometer os mesmos erros.

Do ponto de vista da saúde mental, o fato de o presidente da República do Brasil não concordar com as medidas de isolamento necessárias afeta os profissionais de saúde atuando na linha de frente?

Dra. Alexandrina: Afeta. Quando você me faz essa pergunta, o que tem na sua cabeça? Uma interrogação. Isso gera insegurança. O ministro da saúde vai ser demitido ou não? Ele está sendo aconselhado por grandes médicos e não diz as coisas por acaso, está fundamentado na ciência. Essa instabilidade afeta os profissionais de saúde, porque você já não sabe que tipo de notícia vai estourar, como vai chegar ao final do dia, se vai dormir ou não. Mas é preciso se sentir seguro e ter confiança nas autoridades que estão liderando o combate à epidemia.

A pandemia de Covid-19 é um campo minado para os profissionais da saúde?

Dra. Alexandrina: Sim. Desde antes da pandemia de Covid-19, os profissionais de saúde – em especial os médicos – muitas vezes vêm negando a possibilidade de estarem doentes e vêm se automedicando. Até porque eles têm fácil acesso aos medicamentos. Veja, não estou falando de psicólogos, terapeutas e terapeutas ocupacionais, me refiro principalmente a médicos e enfermeiros, que têm um forte hábito de se automedicar, independentemente do coronavírus. Na saúde mental, isso é amplificado pelo medo, estigma e preconceito.

Quais são os sinais de alerta para quadros de estresse avançados, burnout ou TEPT?

Dra. Alexandrina: A pessoa deve prestar atenção aos sinais do corpo. Ele dá sinais como aumento da pressão arterial, dor de cabeça, aumento da glicemia, insônia, dor no corpo e na coluna, diarreia, vômitos. Estes são sintomas físicos decorrentes do estado emocional. E há também os sintomas emocionais; a pessoa fica mais ansiosa, pode ter crises de ansiedade e de pânico, além de sintomas de depressão, que podem caminhar para uma depressão mais grave, compulsão por tomar medicação.

O mais grave, porém, é a negação disso tudo. A pessoa está se sentindo mal, mas ignora e continua trabalhando, como se nada estivesse acontecendo. Até acontecer algo mais grave. Isso já ocorre independentemente do coronavírus. Temos colegas médicos que de repente, no meio de um plantão, passam mal, desmaiam, infartam. Quando são atendidos, descobre-se que nunca fizeram exames.

Qual é a sua mensagem para os profissionais de saúde?

Dra. Alexandrina: Eu falo desde os anos 80: Médicos e enfermeiros (e isso inclui estudantes, técnicos, auxiliares) precisam lembrar que são seres humanos e podem adoecer. Precisam deixar de lado os preconceitos, estigmas e tabus, principalmente em relação à doença psiquiátrica. Essa mudança de atitude independe da Covid-19 e se mostra cada vez mais importante a cada nova dificuldade.

Fonte: por Mônica Tarantino para Medscape - Foto: Jossué Trejo para Pixabay

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